Espelhos ovais ou, o narcisismo microscópico

Espelhos ovais ou, o
narcisismo microscópico
Albenísio Fonseca

É quase inacreditável, mas aqueles pequenos espelhos ovais ainda existem, melhor, subsistem. Reencontrá-los numa loja de bijuterias foi como acionar a maquinária da memória, transitar no túnel do tempo de volta à infância. Lembrei de sujeitos se deliciando com aquelas mulheres nuas posando no forro, na contraface. Miravam muito mais às mulheres que a si próprios. Havia os que faziam coleção: louras, morenas, ruivas. Negras eram raridades, num claro reflexo do preconceito. O estímulo à “masturbação da imagem”, o retoque rápido de um ideal de si, acessório imprescindível para narcisos da modernidade, era a imagem – direta e invertida –, proporcionada pelos pequenos espelhos ovais.

Fetiches. Permitiam a visão parcial do corpo. Sensações fragmentárias. O riso pela metade. Apenas um olho a cada mirada. Bric-a-brac da sedução, kitsch, caco sucateado dos aparelhos produtores da fascinação e do desejo. Ideais para espremer cravos, espinhas e provocar reflexos com o sol. O brilho remetido à distância. Projeções e provocações. A superfície especular, ovalada, proporcionando o ajuste do penteado. A otimização da imagem. Contemplação exacerbada. Narcisismo microscópico.

E aquelas mulheres ali, impressas com toda a carga de um erotismo travesso – duplo de calendários expostos em barbearias e borracharias. Precursoras da própria nudez em revistas masculinas. Sorridentes, com os seios e o sexo à mostra, em primeiro plano. Anteriores ao cinema pornô. Ícones do prazer e do poder masculinos.

Objetos. A mulher, antes. E, somente depois, espelho. O que se deseja ver, senão o próprio desejo? Ali estava, oval, a um só tempo, pornográfico, estético e acessível, táctil, sedutor, pedagógico. Melhor que os “catecismos” e outros manuais de introdução à sexualidade. Espécie de estampas Eucalol do escracho.

Microuniverso de imagens ilustrativas, suas capas ou forro não se restringiam à sedução com nudez escancarada. Um repertório de imagens com escudos de times de futebol, paisagens bucólicas, santos católicos, artistas e animais ferozes ou domésticos compunha o processo de interação com o imaginário social.

Dispostos às dezenas, como aparelhos de TV, no coração de vitrines, em tabuleiros de camelôs, pareciam ímãs atraindo narcisos. Manipulados por usuários ávidos, os espelhos ovais eram instantâneos, como se diria, hoje, de um celular: em lugar de comunicar através da fala, possibilitava o acabamento, a correção, o retoque da imagem, ou da memória da imagem. Tornar-se-iam facilmente recomendáveis como ideais para assessores de políticos em campanha, empresários, embaixadores.

Justificando-se, também, é certo, pelo fato de que todas as formas portáteis têm, antes, um caráter aristocrático. Ecologicamente corretos, os espelhos ovais já ocuparam mesmo momentos de evidência na transitoriedade cíclica da moda, usados por jovens, crianças, idosos, e tantos mais, chofer de caminhão, taxistas, balconistas, muitos artistas, bancários, ciganos e contrabandistas. Rapidamente acessível nas bolsas de senhoras e domésticas, recatadas e atrevidas, era um acessório imprescindível.

Uma máquina minimalista de investimento na construção da personalidade e na capacidade de fascinar. Batons e pentes acompanhavam a utilização do pequeno espelho. Dado o cuidado e a intimidade com que costumava ser conduzido, era extremamente visível o quanto havia de mais afetividade e simbiose entre o“espelho/objeto /mercadoria/aparelho/máquina” e seu proprietário, que entre corpo e mente, numa aliança com a “ideação reclusa” em cada um, como diria o filósofo Evaldo Coutinho, em seu “O lugar de todos os lugares”, editado pela Perspectiva.

“Narcisos afogados na paixão pela imagem”, acrescentaria o professor gaúcho  Donaldo Schuler, fazendo trafegar o seu Narciso Errante, estudo publicado pela Editora Vozes. Como o Narciso de Ovídio. Ou, do mesmo modo, em plena contemporaneidade, seduzidos pelos incessantes simulacros a brotar na luminosidade das telas de vídeo, em televisões e computadores.

Tomemos a expressão “o visual é essencialmente pornográfico”, de Fredric Jameson, estudioso do marxismo e da pós-modernidade. Como sabemos,“graças às manobras de prestidigitação da publicidade”. Na mesma linha (marxista e pós-moderna), o professor Muniz Sodré assegura o quanto “ver é também tocar, absorver”.

Pornográficos, e para além da estipulação de Jameson, os espelhos ovais proporcionam todo o direito a contemplar bundas, seios, xoxotas – em oferta, com ar de convite à fruição e, imediatamente, no outro lado, na outra face, o próprio rosto, encarando-se num cara a cara.

É o desejo que está fixado na superfície visível da imagem/suporte/capa, quase-envólucro, epiderme do produto em circulação na sociedade utilitarista (e não apenas no caso dos espelhos ovais). Sim, o “espelhinho” proporciona um narcisismo recar-regável a cada nova mirada.

Funcional, como um relógio descartável. Um dispositivo de arrebatamento. Cuja finalidade essencial é a fascinação irracional, mas objetivada, num paradoxo especular. Para Jameson, “a sexualização dos objetos, desencadeando a mercantilização universal das coisas e dos seres, num processo geral de reificação do mundo pela sua capa visível, estabelece dimensões estéticas que determinam o estatuto da Era da Imagem. Tudo é estética, design. Tudo é cultura. Redes de imagens”. A hipótese central dele é a de que “as obras de cultura de massa não podem manipular a menos que ofereçam um grão genuíno de conteúdo, como paga ao público prestes a ser manipulado”.

Nos espelhos ovais estão embutidos, e deles podem emergir mais que objetos e seres – como do ilusionismo da cartola de um mágico ou da computação gráfica – mas sentimentos e sensações como espantos, vaidades, receios e prazeres do autorreconhecimento e reconhecimento das coisas familiares.

Sua manipulação admite circunvoluções, a exemplo de uma câmera de cinema ou vídeo, permite diferentes ângulos de visões (com direito a plongées e contreplongées, mesmo quando só é possível o close-up) em torno do sujeito, numa autêntica envolvência narcísico-afetiva, capitulando à Esfinge da nossa (!) exclusiva excitação retínica.
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Albenísio Fonseca é jornalista, poeta e compositor. Autor de “Jornalismo Cultural em Transe – Épocas em cena”. Editora Boa Ideia, 2017.