Sob o olhar do estrangeiro


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Sob o olhar do estrangeiro

 Albenísio Fonseca 

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oda cidade tem um ou milhares de referenciais muito próprios. Seus ícones. Sua arquitetura. Suas paisagens naturais. Suas marcas, cultura, heranças mis. Entradas e saídas. Portões. Muralhas. A cada país o seu signo. O monte Fuji, no Japão; após os atentados contra as torres gêmeas do World Trade Center, restam o Empire State Building e a Estátua da Liberdade, nos Estados Unidos. A Torre Eiffel e o Arco do Triunfo, na França; a Torre de Pisa, na Itália. A Grande Muralha, na China.

E das mil e uma noites, o que terá restado de todo o patrimônio da humanidade, da origem babilônica da própria idéia primeva de cidade, em Bagdá? O Pão de Açúcar, o Corcovado, as favelas circundantes na paisagem do Rio de Janeiro. Brasília: uma arquitetura para abrigar o poder. Em São Paulo há bem mais o registro de índices marcantes, quer se transite na Rua Augusta a 120 por hora, se ronde pelo Viaduto do Chá ou entre a Ipiranga e a avenida São João: Há a incessante busca de uma identidade desvairada nos limites do sem-fim, assinalado, bem mais, pelo pisca-pisca das antenas das emissoras de TV.

Mas são sempre signos capitais que podem ser convertidos em cartões postais. Imagens que evocam memórias ou se dão a conhecer, como uma silhueta, sob o olhar do estrangeiro. Salvador, nesse sentido, tem uma capacidade múltipla de representar-se. Há uma indústria do olhar a oferecer aspectos vários da cidade. Um dos seus signos maiores, no entanto, é a magia – como pensamos a Índia, mística, enigmática e com seus milhares de signos e representações de Deuses em profusão.

A Cidade do Salvador também é atravessada verticalmente por uma ancestralidade ritualística, quase filha (bastarda) do colonizador escravizante. A crença como uma senha. Cruzes e amuletos. Orixás da minha cabeça. Miséria e beleza de mãos dadas. E mais: uma paisagem urbana feita do contraste das arquiteturas colonial e contemporânea. Cidade Alta, Cidade Baixa. O Elevador Lacerda. A “Fonte” escultura de Mário Cravo. Praça Cayru. Rampa do Mercado Modelo. E os excluídos adormecem sob as marquises do comércio em decadência na Baixa dos Sapateiros.

Mire-se a cidade da Baía de Todos os Santos. Cante-se as canções de Caymmi em Itapuã, ou nas Lagoas de Abaeté e de Pituaçu.  No farol da Barra ou no Parque de São Bartolomeu. Oferendas em toda encruzilhada. Mas gire-se o “globo terrestre” deste estado. A Orla Atlântica, o Litoral Norte. Praias do Extremo-sul e grutas da Chapada Diamantina. Cidades históricas. O Recôncavo. Dunas sobre todo o mapa-múndi baiano. Melhor ainda é o Sol se pondo em Itaparica, horizonte do Porto da Barra. A pele morena de morenas frajolas transpirando todo seu dengo para a boçalidade à toda prova dos homens.

Paraísos recônditos. Do Monte Paschoal vê-se sempre as caravelas, na memória. Morro de São Paulo.  Boipeba. Lençóis. Cabrália. Baía de Camamu. Anotações de Viagem: Tudo isso nos proporciona uma breve noção da existência entre os trópicos, e nos leva à origem das cidades. Fortificações margeando as costas desse novo mundo. As cidades (de uma maneira geral) são filhas da guerra. Far-west da Terra da Felicidade. Soja florescente do Além-São Francisco, Barreiras.

Calor humano na solidão do planeta. Meu corpo, como o prédio (todo em ruínas) da Escola Agrícola Imperial, em São Francisco do Conde, tem 365 janelas voltadas para os quatro pontos cardeais. Castelo da Torre. Monumentos são tatuagens no corpo da história. Praia do Forte. Reserva Ecológica de Sapiranga. Fragmentos do maior latifúndio do mundo. A história dos Garcia d’Ávila. Tempos negros. O negror dos tempos. Pelourinho. Praça da Sé. Terreiro de Jesus. Sobe-e-desce de ladeiras.

Há também um mapa-múndi do Centro Histórico de Salvador. Rituais de passagem. Baianas lavando o adro da Igreja de N. S. do Bonfim. Um território festivo na fronteira entre o sagrado e o profano. Rua Chile. Se houve um crime histórico na demolição do prédio neocolonial da Biblioteca Pública, resgate-se a arquitetura original do Paço Municipal, façamos uma prefeitura de vidros e módulos. Passarelas aeróbicas. Sobre o trilho dos bondes da história, puxados a tração animal, vamos circular em modernas avenidas que cortam os vales. Planícies e chapadas. Encostas. Eis a nova capital em seu mais recente cartão-postal: Um metrô de superfície atravessando o horizonte do provável.

Todo o gado, minas de ouro anunciadas pelo jornal do governador, As sagas do cacau e da cana-de-açúcar, lavras de diamantes. As mil e uma fantasias do Carnaval e das Micaretas nos mascarados de Saubara. Porto Seguro. Pequenos Ilhéus na vizinha nação grapiúna. Urbi et Orbi. Cachoeira e São Félix ao amanhecer, sob neblina, e uma saudade imensa estampada no olhar.

Foi Luiz Gonzaga quem revelou que a expressão “Baião” nasceu da performance de baianos tocando violão. Vamos dançar forró nos mercados municipais das pequenas cidades do Sudoeste, ou  no Norte, em Juazeiro. O universo faz curvas nos extremos deste território. A Bahia é assim mesmo. Uma paisagem descortinada, ou melhor, uma cortina paisageada.


A logística dos camelódromos

Foto: Marco Aurélio Martins/Ag. A TARDE
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A logística dos camelódromos

 Albenísio Fonseca

 O mercado informal, aquele habitado por milhares de camelôs a ocupar as ruas do país com tabuleiros e estandes multicoloridos, tem entre suas mil e uma peculiaridades, uma impressionante logística a atravessar o dia-a-dia do comércio alternativo, em Salvador. Passando quase despercebido, o processo de exposição e guarda das mercadorias, nas ruas e calçadões, envolve “profissionais” encarregados de fazer a retirada dos produtos e conduzi-los para depósitos, e proceder à reposição no dia seguinte. Verdadeiras “mulas”, os carregadores dispõem de grandes carros-de-mão e transitam a partir das 6h e às 19h, início e final de “expediente”, conduzindo as barracas ou estandes e seus objetos de comércio.

A tabela de preços dessa logística envolve, o custo de R$ 1,50 a R$ 2,00 por cada carreto (ou seja, R$ 3,00 a R$ 4,00 ao dia). Para os que trabalham rápido e dispõem de carro com maior capacidade é possível a retirada e reposição dos conjuntos, inclusive de mais de uma barraca diariamente. Tudo, no máximo, envolvendo um raio de 300 metros até os depósitos, para agilizar o trabalho. Mas os camelôs têm, ainda, o dispêndio com a guarda dos seus produtos – de R$ 7,00, a R$ 15, incluído ou não o carregador, por semana – em depósitos localizados no largo Dois de Julho (mais precisamente na Rua do Sodré) e em espaços improvisados, transformados em espécie de almoxarifados, em torno da Barroquinha, e ao longo da avenida Sete de Setembro  (beco Maria Paz, rua 21 de abril), próximo ao Colégio Central, na avenida Joana Angélica, e rua Carlos Gomes. A maioria dos camelôs considera “caro” o custo dessa logística, mas a garantia da retirada e reposição das barracas e mercadorias mostra-se “muito benéfica” para a consolidação da rotina. Toda essa ação acaba embutida no preço dos produtos para o consumidor.

EMPRESÁRIOS SEM QUALQUER LABOR

Entre os “empresários” que oferecem depósitos, não apenas no sentido da estocagem, mas envolvendo a garantia da segurança das mercadorias, há quem estipule um faturamento, sem qualquer labor, em torno dos R$ 1.300 aos R$ 1.800, mensais, a depender da capacidade de armazenamento e do número de “clientes” atendidos. Edson dos Santos Silva, 42 anos, que herdou do pai a atividade de oferta de depósito para guarda de mercadorias, vem atuando há cinco anos na rua do Sodré. Ele diz ter “apenas umas 30 guias, cobro de  R$ 7 a R$ 15, por semana, mas muita gente deixa de pagar e ainda tenho que remunerar os carregadores cujo ganho é aumentado nos biscates, com transportes de geladeiras, fogões e outros produtos”. Ele contou que o pai “já explorava essa forma de depósitos há mais de 20 anos. Só fiz manter o sistema”.

Somam pouco mais de uma dezena os carregadores, se é mesmo possível quantificar este verdadeiro “exército de reserva”, remunerado de meio a um salário mínimo, e menos de uma dezena os que detêm o espaço para a estocagem das mercadorias e das barracas. A necessidade de manter um padrão mínimo de renda levou Rogério Santos, 29 anos, pai de dois filhos, de 4 e 8 anos, matriculados em escolas públicas, a trabalhar como carregador. Ele revela um faturamento de R$ 70 por semana, ou R$ 12, ao dia, enquanto faz o transporte de mercadorias da avenida Sete à rua do Sodré. Ele reside em São Marcos, o que o obriga ao gasto diário dos R$ 12, com transporte e alimentação.

Como Rogério, outros carregadores residem em bairros como Sussuarana, Alto de Cabritos e Coutos, distantes do local de trabalho. Roque Conceição dos Santos, 28 anos, um filho, mora no Centro. Ele é responsável pela recepção e entrega das mercadorias, cuida do depósito como diríamos de um almoxarife, e ganha R$ 300 por mês, mas além de pagar aluguel tem o gasto com refeições e lanches. Durante o dia, Conceição aumenta sua renda comercializando brinquedos e outras mercadorias oferecidas por “sacoleiros”, na avenida. “São produtos adquiridos, em média, por R$ 1, e vendidos por R$ 2”, disse. Ele reclama da ação da fiscalização da Secretaria de Serviços Públicos, mas diz que “é melhor estar correndo do Rapa do que não ter o que fazer, embora tenha dia que não conseguimos vender absolutamente nada”.

MAIS DE 900 AMBULANTES CLANDESTINOS

Vice-presidente da Associação dos Trabalhadores do Comércio Informale Serviços do Estado da Bahia – Assindinformal/Ba, Arismário Nunes Barreto, 38 anos, dois filhos, de 15 e 11 anos, mora na Estrada da Barreira, no Cabula, e trabalha desde os 20 anos como camelô. Antes, trabalhava com a venda de confecções na Baixa dos Sapateiros, agora tem um carrinho de churros no Relógio de São Pedro, avenida Sete. Barreto contou que “desde sempre” guarda suas mercadorias em depósitos. “Costumava pagar cerca de R$ 10, mas há dois anos aumentaram para uma média de R$ 12 a R$ 15”. Ele atribui essa majoração ao fato de existirem “poucos depósitos para a quantidade de camelôs atuantes”. E estipulou que, “somente na avenida Sete existem, hoje, algo em torno de 900 ambulantes clandestinos, que superam mais de mil no período de final de ano”. Segundo ele, “como o comércio de rua está liberado em Salvador, nessa administração, vêm vendedores de Fortaleza, Aracaju, Maceió e de inúmeras cidades do interior da Bahia para faturar com o grande movimento de consumidores”. O comércio informal organizado, segundo Arismário, tem 300 ambulantes licenciados na Baixa dos Sapateiros; 200, na Calçada; 100 na Rodoviária, e 300, aproximadamente, no Comércio.

Antonio Magalhães, ex-empregado da Limpurb, trabalha com a venda de caldo-de-cana, desde 1993. Mora numa invasão, nos Barris, como ele mesmo diz, e paga R$ 3,00 ao dia, inclusive os domingos, para guardar sua máquina. “Para guardar a cana, pago mais R$ 20 ao mês, e tenho ainda o custo da gasolina com que a máquina é movida, cerca de R$ 10, semanais, além de outros R$ 10, para alguém raspar as canas. A soma somente com a estocagem da máquina e do produto alcança R$ 110 mensais”.

Em toda esta logística, no Centro da cidade, onde de segunda-feira a sábado ocorre o transito desses carregadores prestando tal serviço – crucial para o mercado informal – há, ainda, os “sacoleiros” a ostentar o quase-status de empresários, mesmo sem a incidência ou o pagamento de taxas ou impostos, e não disporem ou oferecerem direitos trabalhistas, de seguridade ou previdência, que abastecem esses camelôs com mercadorias oriundas do Paraguai, China ou Coréia do Sul, além de produções domésticas. Outra centena de trabalhadores sui-generis a compor renda nesse mercado de trabalho são os catadores de papelão. Carlos Américo dos Santos, 29 anos, duas filhas, trabalha de domingo a domingo. Diz faturar uma média de R$ 25 por dia. Mora na Saúde, não paga aluguel. Recolhe papelão apenas na avenida Sete e vende “para reciclagem” , no Gravatá e no Politeama, a R$ 0,15 o quilo,.

JOVENS SEM EMPREGO NA RMS

A RMS – Região Metropolitana de Salvador detém o maior índice de desemprego entre os jovens no país.  Segundo dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos) referentes a 2004 e divulgados em setembro último, para o Distrito Federal e regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, São Paulo e Salvador, o maior índice de desemprego entre os jovens aparece em Salvador (42,8%), e o menor, em Porto Alegre (29,3%). Nas seis regiões, o desemprego atinge mais as mulheres – em Recife, são 48,2% das jovens (contra 36,2% deles). O estudo é sobre um contingente de 1,6 milhão de jovens procurando trabalho em um universo de 3,5 milhões de desempregados. A pesquisa mostrou também que, no ano passado, a taxa de desemprego para os mais pobres foi de 67,1% na Grande Salvador.

Entre os milhares de subempregos criados pela globalização, desde catadores de papelão, vendedores de cartões telefônicos, CDs e DVDs pirateados na China, aos que comercializam relógios óculos de grau e esportivos replicados de griffes famosas com extremo requinte em alguns casos, bugigangas tantas, bijuterias mis e acessórios de fácil acesso para o adorno de vaidades femininas,– consolida-se o modelo neoliberal adotado no país. A busca pelo “ganha-pão” revela nesses procedimentos um exemplo cotidiano da mecânica social sob a engrenagem econômica da contemporaneidade.

 

Albenísio Fonseca é jornalista

Criminalidade difusa

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Criminalidade difusa

Albenísio Fonseca

No momento em que todos mantemos a atenção voltada para os acontecimentos em São Paulo, Paraná e Mato Grosso, e sob o impacto estarrecedor das ações da facção criminosa PCC-Primeiro Comando da Capital, em acintoso desafio ao Estado e à própria capacidade de organização da sociedade, ainda que tarde, vale a pena refletir sobre toda esta megarebelião nos presídios, e quanto à existência de uma superpopulação carcerária no Brasil.

Por mais complexa que seja, a gravidade de todo este indesejável cenário decorre, sem dúvida e a um só tempo, das visíveis distorções na (má) distribuição de renda, dos insuficientes investimentos em educação, saúde, moradia, emprego e ausência de uma política de segurança no país como um todo.

Em toda a prática de criminalidade difusa levada a efeito por este grupo, e outros como o CV-Comando Vermelho, o Terceiro Comando e falanges vermelhas, o crime organizado desenvolve acumulações de bens com poder econômico, bélico, alto poder de corrupção, e formas não esclarecidas de legalizar ou “lavar” lucro obtido ilicitamente, com alto poder de intimidação, roubos e seqüestros, em meio às suas conexões locais e internacionais. Consolidaram o tráfico de drogas como apenas um dos seus “empreendimentos”, o mais rentável, como é fácil presumir – e tudo, absurdamente, “orquestrado” por lideranças em regime prisional e sob o beneplácito propinado de policiais corruptos.

Há no histórico dessas organizações alusões de que teriam se constituído sob inspiração de presos políticos, e adotado técnicas de guerrilha empregadas por estes contra as forças do regime militar (1964-1985), durante convívio nas prisões. É evidente, contudo, que essas facções criminosas, sem qualquer viés ideológico, obtiveram um sonho acalentado pelos militantes da guerrilha: o apoio dos segmentos populares de baixa renda, aos quais supre necessidades que constitucionalmente caberia ao Estado prover. Pior, tornaram-se grupos com poder de fogo sofisticado e tecnologicamente superior ao das forças de repressão e investigação.

A sociedade brasileira talvez ainda não tenha se dado conta da horda de bárbaros que cultiva.  Quantos jovens criminosos sem pais, sem paz, sem país, são “qualificados” nas Febens desse modelo reformatório, digo, civilizatório? Futuramente, quantos serão? três, quatro milhões de adolescentes somados a quantos mais, oito, dez, milhões de desempregados em armas?

Sem um projeto amistoso de progresso e futuro, reservando tantos lugares para criminosos em seu tecido social, e mantidos pelos próprios cidadãos-contribuintes, os que sobreviverem poderão constatar uma organização social feita exclusivamente de bandidos ou, de outro modo, vendo restar apenas policiais indo e vindo para a glória da nossa incansável força pública.

Ah! os que sobreviverem verão! Mas é aos legisladores e governantes de agora que cabe a adoção de medidas urgentes tanto para coibir a existência desses grupos, quanto para punir, ou melhor, inseri-los socialmente antes dos apelos da delinqüência. Afinal, os bandidos têm a mão no gatilho, mas é o sistema que os arma.