Mobilidade Urbana

“Quanto mais estacionamentos se criam, mais se prioriza o uso do carro” 

Estacionamentos
Mais que um paradigma
da mobilidade urbana

ALBENÍSIO FONSECA
 
Com as áreas para estacionamentos ocupando espaços valiosos das cidades, afetando de forma negativa o planejamento urbano, a crise da mobilidade vivida nas capitais brasileiras tem um dos mais dramáticos exemplos em Salvador.
A questão torna visível, também, a desigualdade social em meio à disputa pela oferta de vagas, envolvendo a exploração do serviço pela iniciativa privada ou pela Municipalidade, nas zonas azuis, através de guardadores e lavadores de carros sindicalizados, e nos mais diversos locais da cidade por centenas (senão milhares) de “flanelinhas”. Os guardadores clandestinos têm assumido também a condição de manobristas, no afã de garantir a renda para a sobrevivência diária.
O certo é que os estacionamentos deixaram de ser um requisito cômodo para se tornar em mais um catalisador da problemática mobilidade urbana, no âmbito da civilização do automóvel, em um cenário que se repete na maioria das capitais e mesmo em cidades de médio porte: excesso de veículos nas ruas, congestionamentos, índices perigosos de poluição do ar e horas perdidas no transito atrás de uma vaga, mesmo frente à tendência de verticalização para esses equipamentos. 
A constatação, portanto, e os urbanistas não cansam de sinalizar, é que, como um paradoxo, “quanto mais estacionamentos se criam, mais se prioriza o uso do carro particular nas grandes cidades”, aliás, com grande parte de suas áreas já comprometidas ou projetadas para este uso e, ainda assim, a sofrer a carência de vagas. E mais, sob o agravante de que a capacidade de criar vagas não aumenta na mesma razão em que novos carros chegam às ruas.
Do mesmo modo é visível o quanto os estacionamentos geram novos comportamentos nas cidades, na medida em que todos os que optam pelo carro como meio de transporte são, sob o custo do inevitável estresse, obrigados a pensar em locais para estacionar.
Trata-se, em suma, de um amplo mercado a fascinar o poder público, empresários, donos de terrenos baldios, administradores de shopping centers e outros centros de compras, além dos “flanelinhas” e dos guardadores sindicalizados, a buscar uma vaga ao Sol ou sob a chuva, nessa moderna forma de serviço a expandir-se como lucrativo comércio no universo da urbanidade motorizada.
É um senso comum afirmar que “por não termos sistemas eficientes de transporte público, continuamos a usar o carro e então precisamos de estacionamentos”, o que é uma verdade a exigir maior qualidade no planejamento. Mas é correto também ter em conta o quanto não se pode mais planejar apenas sob a perspectiva do uso do carro. 
O planejamento urbano passou a requerer estratégias e ferramentas dentro de uma visão mais abrangente, que inclua os pedestres, os ciclistas e a integração com os diferentes modais de transporte, de modo que o espaço da cidade seja mais bem aproveitado. Estacionamentos, portanto, foram convertidos em paradigmas não apenas da mobilidade e densidade urbanas, mas do planejamento e da qualidade de vida nas cidades.
 
Primeiros estacionamentos surgiram em 1920
 
Os primeiros estacionamentos surgiram nas décadas de 1920 e 1930, quando o número de motoristas começava a aumentar em escala global e os carros passaram a ocupar um tamanho precioso do espaço público – bem entendido, o espaço entre as casas e prédios, assim como o por onde as pessoas antes caminhavam e passavam o tempo livre.
A imposição do carro no domínio público passou a atrapalhar a segurança e a vitalidade das cidades. Por isso, criaram-se legislações obrigando a criação de estacionamentos para todo tipo de empreendimento imobiliário e destino que se podia imaginar.
Desde então, cada viagem começa e termina em algum estacionamento, seja no trabalho, na escola, hospital estádios ou shopping center. O problema é que, em geral, todos que dirigem planejam seus deslocamentos pensando na necessidade de estacionar, de preferência próximos ao seu destino, intensificando o tráfego nesses locais na dispendiosa busca (haja combustível e paciência) por uma vaga.
Mais recentemente, quando as cidades atingiram picos de motorização, as pessoas passaram a gastar grande parte do seu tempo e dinheiro atrás de vagas, aumentando os efeitos negativos do excesso de carros nas ruas, como congestionamentos e a poluição do ar. Os estacionamentos deixaram ser uma boa ideia para se tornarem em mais um desafio para a mobilidade urbana sustentável.

 

Um novo estatuto para os museus

   Foto: Divulgação
Museu Casa do Rio Vermelho, de Jorge Amado e Zélia Gattai, sob curadoria de Gringo Cardia, exemplo de nova concepção museológica
Albenísio Fonseca 
 
Uma nova concepção na atuação dos museus, já há alguns anos, vem sendo implementada tanto no Brasil quanto em diversos países.  Dentre as intervenções propostas, destaque-se a que propõe “demolir” a ideia de divisão do mundo da cultura em camadas, assim como a oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo.
 
 
Os museus passam por significativo processo de transformação oriundo de diversos fatores, entre eles, a concorrência com outros equipamentos culturais. As grandes transformações em curso refletem elementos das novas demandas sociais decorrentes, dentre outras, da grande presença das tecnologias comunicacionais no cotidiano.
 
As novas tecnologias de comunicação revolucionam nosso cotidiano e impõem aos museus a aplicação de um discurso de imagens, sons, luz e cores. A necessidade de novas posturas na concepção de museu, mais dialogadas, representa um desafio de criação e de ousadia na construção de novos espaços de aprendizagem, sejam formais, não formais ou informais.
 
 
Os museus, ainda que em complementaridade aos espaços formais de ensino, promovem hoje uma aprendizagem social do conhecimento. Exatamente pelo fato de o museu não ser a sala de aula, ele requer olhares, novos ou velhos, de pesquisa sobre as práticas educativas que pode propor. 
 
Enquanto local de patrimônio, de coleções de objetos, de artefatos e instância de comunicação, os museus devem converter-se, também, em local de lazer, de prazer, de sedução, de encantamento, de reflexão, da busca de conhecimentos. Em oposição à instituição elitista e estática que se estendeu desde o século XVII, o novo museu deve abrir suas portas ao público e conquistar a rua e todos os espaços sociais de encontro e troca de conhecimento.
 
 
O museu deixa de ser um “mero” local de memória e deleite estético para se tornar referência na paisagem e no convívio urbano, com oferta de atrativos que proporcionem interação e mobilidade, visando não só atrair e ampliar público, quanto fidelizar a presença desse contingente nos espaços e eventos programados.
 
Além da educação patrimonial e suas vinculações com manifestações culturais, o novo museu deve viabilizar funções sociais, por si só interativas, em intercâmbio com outras linguagens, disponibilizando espaços para promoção de espetáculos musicais, cênicos e de dança, lançamento literários, além da oferta de cursos, sem abdicar do caráter expositor e com um lounge para a oferta de Café e lanches ou petiscos típicos da culinária brasileira. Promoverá, desse modo, o acesso e a interação na convergência de encontros e dos conhecimentos em um universo aberto para o transito do passado, do presente e do futuro.
 
Em meio a essa nova concepção dos espaços dos museus, o projeto para esta nova era se define na valorização do multiculturalismo, das múltiplas inteligências, saberes e linguagens. O novo “estatuto” do Museu, portanto, deve passar a conferir significado aos encontros de olhares e busca de experiências sensíveis entre e para o seu público, deixando a definição do atributo singular para converter-se, em suma, em um território plural.
 
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Albenísio Fonseca é jornalista
 
 

Malha Ferroviária sob ameaça

Foto: Saulo Santos

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Máquina com vagões carregados atravessam a Ponte D. Pedro II, entre as cidades históricas de São Félix e Cachoeira, na Bahia

Fora dos trilhos

Ferroviários e empresários reagem
à Resolução 3.141 da ANTT

 

O Sindferro-Sindicato dos Ferroviários e Metroviários da Bahia e Sergipe deu entrada em representação junto aos Ministérios Públicos nos dois estados contra resolução datada de julho de 2013, da ANTT-Agencia Nacional de Transportes Terrestres, que determina à Ferrovia Centro-Atlântica a proceder a desativação e devolução de trechos ferroviários da malha explorada por esta concessionária.

O sindicato requer “instauração urgente de inquérito civil público para adoção das cautelas necessárias para suspender a destruição de parte da rede ferroviária”. Alegam, para tanto, o grave prejuízo ao patrimônio da União e atrofia do desenvolvimento do Nordeste. A entidade alega, ainda, que caso sejam retiradas esses trechos, tidos como economicamente viáveis – além dos já restituídos por falta de viabilidade econômica – “haverá demissão em massa, causando prejuízos às economias estaduais”, conforme enfatizou o dirigente do Sindferro Paulino Rodrigues de Moura.

Em atitude tida como “contrasenso” pelo Sindferro para a economia dos estados do Nordeste, a medida da ANTT determina, além do mais que valores devidos pela FCA, em função da degradação apresentada pela via férrea será convertido em investimentos na malha Centro-Leste (beneficiando os estados de Minas Gerais, Goiás e São Paulo), no montante de R$ 760 milhões, acrescidos de 15%, a título de ‘vantajosidade’ para o setor público, alcançando um dispêndio na ordem dos R$ 874 milhões “a serem classificados como doação”.

Segundo a FCA é importante ressaltar que “esses valores de investimento se referem à devolução de trechos antieconômicos”, também previstos na resolução, e que “devido à mudança do cenário do transporte de cargas, constatou-se a inviabilidade econômica e financeira do restabelecimento da parte não operacional da malha”

Com isso, FCA e Governo entraram em acordo de que seria “mais vantajosa a substituição do valor dos investimentos a serem gastos na recuperação destes trechos, redirecionando-os para regiões mais relevantes dentro do planejamento logístico nacional.

A concessão, implementada em 1996, durante o Governo FHC, estipulava um prazo de 30 anos para exploração, no caso da Ferrovia Centro-Atlântica, de oito mil quilômetros das malhas, em sete estados. Com o lançamento do PIL-Programa de Investimentos em Logística, pelo Governo do Federal, em 2012, o país passou a contar com um projeto da implantação de uma malha moderna. O PIL, no entanto, ainda permanece em fase de estudos.

De todo modo, os trechos concedidos à FCA, conforme a assessoria da empresa, à medida em que forem devolvidos ao governo, serão integrados ao PIL. Desse modo, a concessionária passará à condição de operadora, dentro do novo modelo de concessão, em que os concessionários serão gestores das ferrovias, responsáveis pela infra estrutura, sinalização e controle da circulação de trens. No momento, de acordo com a ferrovia, “não estão previstas demissões, vez que a empresa manterá seus negócios ativos nas regiões de influência dos trechos viáveis devolvidos”.

O Governo do Estado, através do secretário de Desenvolvimento, James Corrêa, salientou que a FCA é administrada pela VLI-Vale Logística Integrada, uma holding da Vale do Rio Doce, “que não consegue operar mais a malha com a configuração que tem hoje”. Corrêa disse da “importância estratégica da malha existente para o desenvolvimento do estado” e que “gestões serão feitas junto ao Governo Federal no sentido de que essas linhas economicamente viáveis não sejam desativadas”.

A malha total da FCA na Bahia tem 1.626 quilômetros. Ela está compreendida no corredor logístico Minas-Bahia, eixo de ligação ferroviária entre o Nordeste e Sudeste do País com acesso ao porto de Aratu, transportando cargas como minerais e madeira. Em 2014, a FCA transportou 1,5 milhão de toneladas de carga na Bahia.

 

Empresas reagem e exigem manutenção da malha

 “Não se pode desativar a malha ferroviária do estado sem ocasionar graves e irreversíveis danos à economia baiana, à logística das empresas e aos investimentos aplicados na construção de linhas e bases para carregar e descarregar vagões com produtos como minérios, petroquímicos, combustível e frutas”.

A posição, firmada ontem pelo diretor Executivo da Usuport-Associação dos Usuários de Portos da Bahia, Paulo Villa – enquanto representante dos interesses de empresas integrantes do Núcelo Feroviário da entidade – é mais uma dura reação à Resolução 4131 da ANTT. “A Usuport se posiciona contrária à desativação das ferrovias para o transporte de cargas e exige a manutenção da malha ferroviária no estado”, enfatizou.

Em ofício datado do último dia 9 e encaminhado ao diretor Geral da ANTT, Carlos Nascimento e ao secretário estadual de  Infraestrutura, Marcus Cavalcanti, as empresas BSC-Bahia Speciality Cellulose, Colomi, Cristal, Dow Brasil, Ferbasa, Magnesita e Paranapanema discordam da devolução e desativação de trechos, defendendo a “manutenção integral da malha ferroviária, como também o funcionamento de todos os serviços de transporte”.

Sustentam, ainda, que a concessionária “deve restabelecer as capacidades dos trechos, com a realização dos investimentos necessários ao bom funcionamento dos serviços”. Salientam, também, a “importância da reativação do trecho Senhor do Bonfim-Juazeiro”, considerando-o “estratégico” para a economia do estado e do Nordeste.

Em documento anterior, de agosto de 2014, as empresas integrantes do Núcleo Ferroviário da Usuport já haviam se posicionado no sentido de que “antes de determinar a devolução de trechos, a ANTT deveria ter contratado a nova infraestrutura e autorizado o novo operador ferroviário, para que a transição acontecesse sem a descontinuidade dos serviços”.

Conforme Paulo Villa,  “como os trechos e a logística da Bahia não estão sendo priorizados, entende-se que a Resolução ANTT no 4.131 foi precipitada”. Ele salienta que, na prática, “a resolução nada mais é que um cancelamento da concessão e tinha como horizonte a implementação do PIL-Programa de Investimento em Logística, lançado pelo Governo Federal em 2012, mas que não obteve continuidade”. Logo, conclui, “a Resolução perdeu o sentido e não há porque mantê-la”.

Villa acentua, do mesmo modo, que a vigência da Resolução “estimula a contínua redução dos serviços e da manutenção de vias, como já vem sendo demonstrado às usuárias pela concessionária”.

As empresas discordam, além do mais, da negociação realizada entre a ANTT e a FCA, que resultou em dois pontos prejudiciais ao Estado da Bahia e que devem ser revertidos: a) as multas decorrentes do contrato de concessão à FCA devem ser integralmente aplicadas na Bahia, se foram geradas neste Estado; b) a cessão gratuita do direito de passagem à FCA, no eventual futuro modelo nos trechos baianos, será uma barreira de entrada a novos operadores ferroviários do transporte de carga, já que estimularia a manutenção do mesmo monopólio de transporte.

O documento defende, do mesmo modo, a “elaboração de um Plano Estadual de Ferrovias, para servir de referência às ações de integração logística, focado no atendimento aos setores produtivos da Bahia, incluindo a transição para o novo modelo sem prejuízos aos usuários, assegurando a continuidade dos serviços e garantindo oferta de tarifas compatíveis com os padrões internacionais”.

Produtos e movimentações

Passando por estações ferroviárias em ruínas, locomotivas e vagões transportam por licenças especiais de 180 dias, os seguintes produtos e volumes de cargas:

Sínter (derivados siderúrgicos): O cliente é a Bamin-Bahia Mineradora. Movimenta 22 trens por mês transportando 40 mil toneladas de minérios de ferro extraídos em Caetité (BA). Sai de Brumado (BA) e segue para Capitão Eduardo (MG); outro carregamento segue para exportação pelo Porto de Aratu desde junho de 2014.

Toretes de eucalipto: O cliente é a Bahia Speciality Celulose. Movimenta 28 vagões com duas locomotivas, transportando 37 mil toneladas/mês. Sai de Esplanada (BA) e segue para Camaçari (BA). Antes da Resolução da ANTT, a carga compreendia 40 vagões, com 54 mil toneladas mensais. Os 12 vagões tornados ociosos foram levados para o corredor MG-RJ.

Cal:  O cliente é a Dow Química. Envolve três viagens por semana, com cerca de 17 mil toneladas/mês, saindo de Vespasiano ou Nova Granja (MG) e seguindo para exportação via o Porto de Aratu;

LAB (Linear AlkylBenzene): Atende à Deten. Com um trem por semana, transporta 3 mil toneladas/mês. Sai de Camaçari (BA) e segue para Vespasiano (MG);

Cromo: Atende à Ferbasa, com duas ou três locomotivas e até 26 vagões. Vem de Itiúba (BA) e de Campo Formoso (BA) e segue para Irapuí, em Pojuca (BA);

Combustível: Sai de Candeias e segue para Montes Claros (MG), com quatro trens por semana, em média, transportando 17,6 mil tonladas/mês. Vale salientar que dois trens que saiam da Refinaria Landulpho Alves, em Candeias, para Juazeiro deixaram de efetuar o transporte do produto por falta de segurança nas condições dos trilhos e presença de dormentes podres.

Tarugo: O cliente é a Gerdau. Dois trens de 20 vagões por semana, puxados por duas locomotivas com duas mil toneladas/mês. Sai do Parque Industrial de Minas Gerais, segue para o Complexo Petroquímico de Camaçari.

 

As mil e uma faces da Baía

      Foto: Albenísio Fonseca
Por do sol na Baía, em reflexo nos janelões do Elevador Lacerda por você.
Por do sol na Baía de Todos os Santos, reflexo nos janelões do Elevador Lacerda

Albenísio Fonseca

A Baía de Todos os Santos (BTS) está convertida no principal cenário para o desenvolvimento de estudos científicos e de gestão ambiental no Estado. Os projetos visam à revitalização e envolvem o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) – com participações das universidades estaduais, da UFBA, UCSal e Instituto Fio Cruz, entre outras instituições.

Maior do Brasil em extensão territorial, com 1.052 km², e em diversidade cultural, biodiversidade de manguezais, remanescentes da Mata Atlântica, restingas e recifes de corais, além de belíssimas paisagens, a baía tem presente, também, a foz dos rios Paraguaçu, Jaguaripe, Subaé e inúmeros riachos que desembocam em suas águas, no oceano Atlântico.

O amplo território marítimo, subaquático e continental, definido como Área de Proteção Ambiental (APA) através do Decreto Estadual 7595, de 1999 – importando aí toda a fauna, flora e contingente humano – somente em 2009 teve assinado o termo de cooperação para a criação do plano de manejo. Com limites no Porto da Barra, em Salvador, e na Ponta do Garcez, em Jaguaripe, a BTS é área com opções para o lazer, a pesca e esportes náuticos, também como fatores para o turismo em suas 56 ilhas e praias paradisíacas de águas calmas e cristalinas, ainda sob permanente ameaça de substâncias poluentes.

Mas há questões que permanecem sem respostas, antes mesmo de qualquer abordagem sobre a controversa ponte ligando Salvador à ilha de Itaparica, em todo o exasperado processo de expansão urbana e busca de saídas que superem o gargalo da travessia pelo atrofiado sistema ferry-boat, e no afã de canalizar a produção de bens agrícolas originada no nosso novo Oeste. Embora que para a lástima de movimentações por um porto avaliado como o pior do País. Sim, justo este que já foi o “Porto do Brasil”. Cientistas e pesquisadores garantem desconhecer o projeto, em mãos de gestores improvisados e construtoras ávidas por obras faraônicas.

Com contorno litorâneo de 300 quilômetros, e sem deixar de navegar na idéia de que o Estado deve a ela o próprio nome, a Baía é na realidade um golfo composto por três baías, sendo a de Aratu, que comporta o porto do mesmo nome – abrigo da movimentação de 60% de toda a carga baiana em modal marítimo – e a Refinaria Landulfo Alves. A BTS é marcante, ainda, pela retilínea e íngreme escarpa tectônica, onde está assentada Salvador: “Mais belo exemplo de um bordo cristalino de fossa costeira existente em toda a América do Sul”, e que converte a cidade em verdadeiro belvedere.

Afinal, onde andam os programas para a revitalização do tráfego de mercadorias pela BTS? Em qual gaveta ancora a Via Náutica? Saúde-se, agora, o programa de revitalização do Comércio de Salvador, com a demolição dos obsoletos armazéns para descortinar a baía para o povo e o desencalhe de programas para o desenvolvimento de modernas tecnologias de construção naval com a construção do Estaleiro Enseada do Paraguaçu, um investimento privado de cerca de R$ 2,6 bilhões.

Mas, o que atrofia a implantação, na Avenida da França, de um espaço que poderia conter o Memorial do Recôncavo com centros de exposição e conferências, biblioteca, anfiteatro, Museu do Saveiro e tudo o que proporcione às novas gerações vivenciar a memória cultural desta região? Onde estariam assoreados os planos de desenvolvimento para revigorar os estuários do Jaguaripe, Paraguaçu e Subaé? E os programas de assentamento das imensas marginais ao longo desses rios para produzirem bens agrícolas em cooperativas com alta tecnologia produtiva? Cadê a maricultura sustentável e cooperativada, que distribuiria riquezas para as vilas de pescadores? Sim, e o inquérito sobre contaminação do pescado e em crianças da Ilha de Maré por chumbo e cádmio?

Velejemos, ainda, no cenário marcado por forte desigualdade social, com cerca de três milhões de habitantes e mais de 200 empresas e indústrias ou na maré dos seus principais conflitos ambientais, que envolvem pesca com explosivos, lançamentos de efluentes domésticos e industriais, ocupação desordenada do solo, desmatamento, disposição inadequada de resíduos sólidos, caça predatória, extrativismo descontrolado de crustáceos e moluscos, ocupação de áreas de preservação permanente.

Com as fundamentais iniciativas de estudos em caráter multinstitucional e multidisciplinar, malgrado os parcos recursos e desarticulação entre si, falta à BTS um Projeto Metropolitano que considere todos os aspectos científicos, culturais, artísticos e ambientais, na abrangência dos 13 municípios por ela beneficiados, e que reanime a economia regional sem a inconsistência de pontear, unicamente, a vocação em torno da rentável, mas predatória, indústria do turismo.
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Albenísio Fonseca é jornalista

Amanhecer em Salvador

Foto: Albenísio Fonsecafoto
 Amanhecer em Salvador
Albenísio Fonseca
Bom Dia! Exatamente às 5h55 o Sol começa a surgir no horizonte da cidade. As nuvens cinzentas vão-se enchendo da brilhante radiação. As praias estão quase que inteiramente desertas, mas algumas pessoas já se atrevem à caminhada enquanto o transporte coletivo, malgrado a total deficiência do sistema, vai trafegando com um grande contingente de trabalhadores que se desloca a fim de cumprir a rotina de mais um dia de trabalho.
Sol nasce para todos. Nos bairros, na periferia, nos hospitais, terminais de ônibus, feiras livres, colônias de pescadores. Cruzando o ar límpido e poluído na Baía de Todos os Santos. Ilhas à deriva. No Centro Histórico, em pleno Pelourinho, os pombos vão catando alimento entre um paralelepípedo e outro, onde há mais de um século comemorou-se o centenário da Abolição da Escravatura e onde durante 300 anos o sangue escorria e o suor do escravo não era decorrência do calor, mas da tirania. Os pombos habitam os velhos casarões, algumas corujas preferem o alto das igrejas.
Mas é de manhã e as pessoas deslocam-se malemolente, espreguiçando o dia. O nascer do Sol é um espetáculo fantástico. Mas as pessoas não ligam, já vão trabalhar, estão atrasadas, vão sendo substituídos pelo repicar dos sinos. As missas, em geral, começam às 7. Salvador inteira parece um receptáculo para o Deus-Sol.  O sol ainda é o astro-rei. Dos becos e vielas, alguns dos centros das praças, boêmios surgem tentando estar atentos, quase vampirizados pela luz solar, como quem busca uma justificativa para a noite em branco. O hálito azedo, um riso num canto da boca.
D

as dezenas de invasões da cidade ouve-se o choro de crianças. As mulheres já lavam roupas e as vão pendurando nos varais ou por sobre a areia branca na Lagoa do Abaeté. O trânsito passa rente, num volume crescente. Um rastro de fumaça vai invadindo a brisa da manhã. A vida respira, intoxicando-se lentamente. Automóveis invadem o silêncio. Nos terminais de ônibus, usuários vão cruzando a roda-viva dos torniquetes. Poucos demonstram disposição. A maioria traz na face a expressão da noite maldormida. O sonho de felicidade, a busca incessante do status de consumidor (e de consumidor implacável, desses que querem comprar tudo) está presente em todos os olhos ainda sujos da noite.

I

ncessantemente condenada a ser uma cidade-verão, Salvador tornou-se também numa cidade-dormitório para os milhares que trabalham em localidades da Região Metropolitana. Os que se dirigem ao Pólo de Camaçari embarcam sonolentos, mas sorrindo.  Similares, ambulantes vão expondo seus produtos. Há toda uma logística a garantir o mercado paralelo. Vista do mar, a cidade é um plano (arquitetônico) inclinado. Os habitantes transitam no sobe-e-desce do elevador Lacerda e no charriô do Gonçalves, quando funcionam. O Sol atravessa os corpos, as avenidas, janelas, expectativas.

A

gora, na Orla, tudo é luz. Os faróis já não sinalizam as pedras e recifes aos navegantes. As plantas abrem suas folhas e flores. Jornaleiros invadem as esquinas, oferecem as notícias. Nos jornais andava todo o presente, mas, online, os fatos não cessam, enquanto as rotativas estão ociosas. Meninos de rua ofertam o destino em serviços de limpeza dos pára-brisas dos carros. Free-lancers do descaso social. Entre o subsistir e o sobreviver, sem escapatória.

A

cidade acorda feliz, mesmo que poucos saiam para ver o Sol. O espetáculo está em toda a parte, independe das nossas presenças. Tudo em volta, agora, é movimento. O Sol inventa as cores, aciona as pessoas, enche-as de vida, de beleza, de jovialidade. Energiza os corpos. Faz os homens tornarem a vida num filme de ficção. Mas é Primavera, e tudo flori. No Dique.  O café da manhã evapora seu aroma entre um suco de frutas e um copo de leite, dois ovos fritos, pão cacetinho, bananas-fritas ou cozida, poucas frutas, aipim, mingau e queijo.

C

hove. Com tempo ruim todo mundo também dá bom-dia. Combinam-se os contatos, os telefonemas, novos compromissos. Há os que só saem de casa depois de ler o horóscopo do dia. Os astros continuam a determinar nossas vidas. Lêem-se os jornais, ouvem-se as emissoras de rádio, entreolha-se os telejornais, consulta-se e-mails e entra-se nas redes sociais. Outros deixam que o dia-a-dia determine o seu estar no mundo.

O

tempo muda à toda hora. O sinal está aberto e os carros buzinam pedindo pressa. Os humanos giram em redor do próprio eixo, uma instância externa que lhes coage e exige de tudo, principalmente eficácia. Na classe média, as crianças vão despertando para o corre-corre da ida à escola. Outras acordam mais tarde e gastam todo o tempo entre brincadeiras, teimosia, televisão, internet e videogame. Jogam a bola da Copa, após o desjejum, ou disparam a fazer perguntas irrespondíveis, como se soubessem que mais vale uma pergunta certa que uma resposta perfeita à pergunta errada.

R

ápidos, como numa tendência estatística (e hoje mais valem as tendências que os fatos), milhares de desempregados procuram um lugar ao Sol no mercado sem vagas. Mulheres, e não apenas as baianas, dão o último retoque na maquiagem e deixam o rosto no espelho. Homens exercitam a boa-forma. A Turma da Madrugada ainda percorre o Parque da Cidade num cooper incansável. O calçadão do Jardim de Alá é o trecho preferido para a caminhada.

D

estino em transe. Solidão na Baixa dos Sapateiros. 15 Mistérios. O comércio desliza suas portas. Nos escritórios datilografam-se os dedos. Mas as agências bancárias só abrem às 10. Café da manhã em hotel cinco estrelas é sempre um bom programa. Exige apenas excelente companhia. Mas em algumas milhares de mesas faltam o leite e o pão. Enquanto alguns tencionam a vida na embreagem dos seus automóveis, outros tantos descontraem e planejam ações em meio a um engarrafamento no Corredor da Vitória, na Calçada, nas avenidas Oceânica, Paralela, Bonocô, San Martin. Em Brotas, na Liberdade, no Cabula ou no Rio Vermelho. O trabalho é um ardil. O que todos querem é garantir mais dias para o lazer, ensolarar a existência, eternizar o Carnaval, tornar perene o happy-hour e, no retorno, o cheiro do acarajé invadindo todas as narinas, viver num clima de lua-de-mel, como deus e o diabo gostam.

A

felicidade continua sendo uma arma quente. Longe da guerra e da revolta das multidões, a milhas e milhas do Oriente Médio, do Porto da Barra à Ribeira e daí até Stella Maris e ao Flamengo, somente os iogues saúdam o nascer do Sol com movimentos de uma ginástica ritualística. Nenhuma ética, exceto a iogue, percorre o amanhecer. Todos seguem de roldão na maré de um novo dia, perseguindo um novo final de semana. Aos poucos, gigantescas nuvens cinzentas vão cobrindo todo o céu e, quase imperceptível, uma réstia de Sol ilumina Salvador inteira.

O artesanato e a razão da máquina

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Albenísio Fonseca

Fazer alguma coisa é conhecer a fórmula mágica que permitiu inventá-la ou fazê-la aparecer de maneira “espontânea”. Por essa razão, o artesão sempre foi visto com respeito ou temor, já que é detentor de um segredo, pois todos os ofícios comportam uma iniciação que se transmite por meio de uma tradição oculta. Consta que Dédalus, arquiteto e artesão de renome, possuía movimentada oficina em Atenas, onde ensinava seu ofício a vários aprendizes. Um deles, seu sobrinho Talo, suplantou-o em criatividade a ponto de inventar o serrote, o torno de oleiro e o compasso.

Enciumado, Dédalo assassinou-o e foi condenado ao degredo. O caráter mágico do artesão, contudo, foi substituído, contemporaneamente, por uma linguagem e um saber-fazer tão estranho aos não-iniciados que cada um desses grupos continua a manter, para os demais, sua aparência de mistério. Na luta pela sobrevivência, o ser humano (ao longo do decurso histórico) teve que executar atividades penosas e que requeriam grande dose de esforço físico.

Talo, sobrinho de Dédalo, criou instrumentos cuja finalidade era tornar menos árduo o trabalho e que, inicialmente feitos de ferro, acabaram por receber a designação genérica de ferramentas. A utilização dessas ferramentas, uma extensão das mãos, exige apenas habilidade e um mínimo de adestramento. É por isso que a passagem da ferramenta para a máquina significa também rejeição a todo um caráter litúrgico do trabalho.

HISTÓRIA, HÁ 6 MIL ANOS

A inexistência ou mesmo a precariedade de instrumentos auxiliares é que certamente provocou a necessidade da domesticação de animais, e da submissão de outros homens pela força, obrigando-os a tarefas exaustivas de que se eximiam os dominadores. A limitação dessa atividade vai decorrer tanto por problemas de natureza ética quanto pela dificuldade de manter-se o controle sobre contingentes escravizados, o que não deixou, contudo, de gerar derivados, do qual a máquina é a expressão moderna.

A história do artesanato tem início com a própria história do homem, pois a necessidade de se produzir bens e utilidades de uso rotineiro, e até mesmo adornos, expressou a capacidade criativa e produtiva como forma de trabalho. Os primeiros artesãos surgiram no período neolítico (6.000 a.C) quando o homem aprendeu a polir a pedra, a fabricar a cerâmica e a tecer fibras animais e vegetais.

No Brasil, o artesanato também surgiu neste período. Os índios foram os mais antigos artesãos. Eles utilizavam a arte da pintura usando pigmentos naturais, a cestaria e a cerâmica, sem esquecer a arte plumária como os cocares, tangas e outras peças de vestuário feitos com penas e plumas de aves.

O artesanato pode ser erudito, popular e folclórico, podendo ser manifestado de várias formas como, nas cerâmicas utilitárias, funilaria popular, trabalhos em couro e chifre, trançados e tecidos de fibras vegetais e animais (sedenho), fabrico de farinha de mandioca, monjolo de pé de água, engenhocas, instrumentos de música, tintura popular. E também encontram-se nas pinturas e desenhos (primitivos), esculturas, trabalhos em madeiras, pedra guaraná, cera, miolo de pão, massa de açúcar, bijuteria, renda, filé, crochê, papel recortado para enfeite, e tantas mais.

O artesanato brasileiro é um dos mais ricos do mundo e garante o sustento de muitas famílias e comunidades. O artesanato faz parte do folclore e revela usos, costumes, tradições e características de cada região.

A produção artesanal, por si só, hoje, é uma questão complexa. Entre alguns fatores de ordem tecnológica, que o artesão (via de regra) parece desconhecer ou não aplicar no desempenho da sua atividade, podem ser arroladas as técnicas de definição da temática, da criação (considerando-se os fatores históricos e culturais), escolha de matéria-prima adequada, conhecimentos e domínio da técnica escolhida e conhecimento da técnica da fase de acabamento.

A carência de entidades de classe organizadas e conhecedoras dos valores e direitos da categoria, e que ao mesmo tempo disponham de recursos técnicos para facilitar o desempenho do desenvolvimento das atividades, seja ao nível sociológico, tecnológico, político, econômico, comercial ou jurídico – tem sido um entrave ao desenvolvimento do artesão.

TÉCNICA DERIVA DE ARTE

Técnica, é bom lembrar, deriva de “Techne”, palavra grega que significa “arte”, sentido que menos possui no entendimento atual. O certo, no entanto, é que a técnica existe desde que o homem conseguiu fabricar artefatos, ainda que rudimentares. Inicialmente, essas técnicas eram ao mesmo tempo mistérios (os “segredos do ofício”), situando o homem arcaico num universo saturado de sacralidade. Hoje, reina ainda, bem mais conceitual que arquetipicamente, uma grande confusão entre teoria, ciência e técnica, compreensível na medida em que o papel da ciência é o de fundamentar a civilização tecnológica.

Também proveniente do grego, “theoria” no entendimento original correspondia a contemplação. A separação entre teoria e prática era desconhecida no significado original. Modernamente, contudo, converteu-se em instrumento ideológico. A ciência, que não é filosofia, embora tenha se desenvolvido a partir do horizonte aberto por esta, é muito mais um ardil teórico. E, como todo ardil, é uma aparelhagem de captura.

Com isso, a própria ciência se torna tecnologia, ou seja, instrumento de apresamento da realidade. A razão da máquina – que não é uma soma de ferramentas ou uma ferramenta muito rápida – é a submissão da natureza. A distinção é clara: a ferramenta serve ao trabalho humano, que a cria em função de suas necessidades, enquanto que a máquina projeta o trabalho humano, e dele se serve.

Para o homem grego, a natureza tinha que ser compreendida e assimilada, nunca submetida. O cálculo utilitário, no entanto, converteu a produção e o consumo no próprio sentido da vida. Toda essa discussão é secular.

O abandono da herança clássica pela visão moderna pode ser resumido na afirmação, quase um vaticínio, de Charles Chaplin: “Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido”.

Design – A ilusão estratégica

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Albenísio Fonseca

Até o século 19, o derivado da filosofia era a revolução, agora é o estilo. Essa modalidade do fazer regida sob a aura do único, do exclusivo, é um atributo com características pré-industriais, mas foi resgatada para a modernidade com o advento do design. No princípio era o verbo. Hoje, tudo é design. Desenho industrial.  Designo. Design. Embalagens de produtos, escolha e disposição de cores, formas, programação gráfico-visual de jornais, revistas, decoração, moda, arquitetura – o design está em toda a parte.

Verdadeiro processo industrial do estímulo, equacão funcional dos gostos, o design é uma ilusão estratégica, um invólucro articulado sobre o ideal do objeto, uma resolução estética regida sob o cálculo racional da funcionalidade. Já não se trata de valor de estilo ou conteúdo, mas do próprio processo da comunicação e da troca que a tudo designa.

“O belo é o útil e o útil é o significado”, já estipulava o poeta Décio Pignatari, um dos criadores da Poesia Concreta. O design tende sempre a ser um conjunto estético sem lapsos, sem falhas, sem comprometer a interconexão dos elementos e, inclusive, a transparência do processo, ideal sonhado pelos manipuladores de códigos, designers ou não.

Mas o fundamento da forma (mercadoria) e da economia política, nunca é dito. O design funda o sistema do valor de uso. Para que os produtos sejam trocáveis é preciso que sejam pensados em termos de utilidade. Do mesmo modo que no valor de troca o homem (produtor) não aparece como criador, mas como força de trabalho social abstrato – no sistema do valor de uso o homem (consumidor) nunca aparece como desejo, mas como força de necessidade abstrata.

O que é consumido nunca é o próprio produto, mas sua utilidade. Se com a Revolução Industrial eventualizou-se a noção de produto, com a Bauhaus (mais importante escola de desenho e arquitetura em todo o mundo, fundada na Alemanha em 1919) tudo torna-se objeto, segundo uma lógica irreversível.

Simultâneo ao surgimento do objeto funcional, ocorre o do objeto surrealista: espécie de espelho mágico ridicularizador e transgressor do primeiro. O surrealismo ilustra e denuncia o esquartejamento do sujeito e do objeto. Ao libertar o objeto da sua função, revertendo-o em associações livres, a transgressão surrealista é, ainda, um jogo com objetos formais, figurativos.

Hoje, a funcionalidade quase artesanal da Bauhaus foi ultrapassada pelo design matemático e pela cibernética do ambiente. Vide as estruturas vivas, os prédios inteligentes . O que o design nos faz ver é que nosso ambiente é um universo de comunicação. Se começou por aplicar-se apenas aos produtos industriais – antes nada era objeto, nem mesmo o utensílio cotidiano – depois tudo é, tanto o prédio, como o talher, como a cidade inteira.

Tudo hoje é circunscrito pelo design. Tudo é designado: o corpo, a sexualidade, as relações humanas, sociais, políticas. Do mesmo modo, as necessidades e aspirações. Esse universo designado, ou em outra palavra, fetichizado, é que constitui, propriamente, o ambiente. Em suma, no processo econômico de troca, hoje, já não são as pessoas que efetuam trocas, mas o próprio sistema de troca, que se reproduz através delas.

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Rodin na Bahia

https://albenisio.files.wordpress.com/2009/10/rodin-mulher.jpg?w=200https://i0.wp.com/sabercultural.com/template/escultores/fotos/AugusteRodinFoto01.jpg

https://i0.wp.com/www.andaluxia.com/malaga/rodin/fotos/rodin_21-10-2007-09.JPG
“Os burgueses de Calais” em http://www.dezpropaganda.com.br/blog/?p=125

Para ver Rodin,

além do modelado

Albenísio Fonseca

Em um país, no qual apenas 13% vão ao cinema uma vez por ano; só 17% compram livros; 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança; mais de 75% dos municípios não têm centros culturais, museus, teatros, cinemas ou espaço cultural multiuso, e 92% nunca visitaram um museu, soa como uma dádiva a abertura e permanência por três anos da exposição “Auguste Rodin, homem e gênio”. Com 62 esculturas em gesso, do artista, no Palacete das Artes Museu Rodin Bahia, é, sem dúvida, uma das atividades mais esperadas da programação do Ano da França no Brasil.

Independente do fabuloso legado e influência da sua escultura para gerações de escultores, em todo o mundo, vamos poder constatar o fenômeno da atualidade de seu trabalho no processo mesmo da recepção estética. Tema universal da escultura, o corpo humano é o alvo de seu trabalho e foco maior de seu interesse. Nessa corporeidade, enquanto réplica do ser, suas esculturas evocam, a um só tempo, a magia e o simulacro.

Como nenhum artista, em todo o decurso histórico, François-Auguste-René Rodin (1840 -1917) faz sua obra transitar de um renovado sentido de naturalismo – sem jamais perder seu caráter totêmico e mágico – para a condição de simulacro da vida fremente de valores primitivos e universais interligados. Um simulacro da corporeidade humana em diálogo com um outro corpo real e vivo, o daquele que se aproxima no seu espaço circundante.

O tema do corpo humano, sua materialização em qualquer momento e circunstância da história, gera um elo simbólico entre o artista e a matéria, entre criador e criatura, aí incluso o receptor da obra. Rodin antecipa as proposições dos surrealistas nos anos 30, ao estabelecer uma ponte entre a corporeidade de suas esculturas e o corpo real e vivo do espectador que se lhe acerca – estabelecendo um diálogo de corpos.

A escultura é a ciência do modelado. Mas, diferentemente da escultura  acadêmica de seu tempo, feita para ser vista de um só ponto frontal e de baixo para cima, na escultura de Rodin todos os ângulos são importantes.

Como diríamos de uma área de impacto, de trocas sensíveis entre o espectador e a obra, um campo de força, energético, vai exigir uma “leitura” ativa, andar em volta ou em movimento pendular de aproximar-se ou afastar-se. Se preferir, ainda, em diagonais, avistando das laterais os perfis possíveis das massas modeladas.

Marcada pelo naturalismo, segundo uma “poética das massas”, a humanidade na estatuária de Rodin, apresenta-se modelada em dinâmicas representações de energia física, biológica e emocional. Pesquisador do corpo humano e suas possibilidades vitais, ele desenvolveu um método experimental de análise e de captação das posturas e aparências das superfícies dos corpos masculinos e femininos. Estes com franca exposições dos órgãos sexuais a reforçar sua feminilidade.

De forma singular, segundo a ensaísta Daisy V. M. Peccinini de Alvarado, Rodin mantinha em seu ateliê modelos despidos. “Homens e mulheres, ora em repouso, ora em movimento, com a finalidade de fornecer-lhe imagens da nudez do corpo humano, nas posturas mais comuns da vida cotidiana ou mais complexas, sob condições de acontecimentos extraordinários. E de um modo que nos permitisse ler a expressão do pensar e do sentir em todas as partes do corpo: músculos, rugas, posturas, tensões e relaxamentos, a revelar pensamentos e sentimentos”.

Rodin parecia acreditar que cada situação criada na tridimensionalidade de uma escultura corresponde a um tipo de emoção ou sensação, articulando verdadeira fisiologia das paixões humanas, em revolucionária linguagem escultórica.

E que em lugar de permanecermos como periféricos da cultura (e do pensamento), tenha essa exposição de Rodin, para umpúblico multivariado, a possibilidade de tornar mais inteligente a nossa retina, frente à Medusa excludente que insiste em nos petrificar o olhar.

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Albenísio Fonseca é jornalista, poeta e compositor 

Sistema cicloviário

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A “magrela” é sete vezes mais eficiente que o automóvel


Albenísio Fonseca

Em meio à crise de mobilidade urbana gerada pelo excessivo número de automóveis, reduzida expansão de vias, insuficiência e má qualidade do transporte coletivo, e diante da exclusão de parcela significativa de pessoas de baixa renda, sem disponibilidade para pagar a tarifa de ônibus, é urgente a implantação de um sistema cicloviário em Salvador e macrorregião.

Governo e Prefeitura dispõem de projetos nesse sentido, mas não demonstram, ainda, a vontade política necessária para contemplar 47% da população que andam a pé, ou  (7%) de bicicleta, pelo menos meio quilômetro diariamente, conforme pesquisa da Associação Nacional de Transportes Públicos.

A infraestrutura necessária à implantação de um sistema cicloviário é a que dispende menor custo, pelo poder público, em relação a qualquer outro sistema de transporte. Em tempos de economicidade, a bicicleta conta com fatores importantes como preço, baixa manutenção, consumo zero de combustível e nenhuma emissão de poluentes, além de possibilitar exercício físico com ganho para a saúde do usuário.

A “magrela” é sete vezes mais eficiente que o automóvel. Ou seja, a circulação de carros, por hora, numa faixa de tráfego, comporta 2 mil pessoas; por ônibus, 9 mil; enquanto de bicicletas permite 14 mil pessoas. Não há dúvida que a bicicleta representa uma solução fundamental para o transporte nas cidades. Seja por garantir o direito de ir e vir, seja por liberar a população carente da exclusão territorial e para práticas sócioespaciais ampliadas.

Iniciativas nesse sentido têm sido adotadas com êxito em diversas capitais brasileiras, e em inúmeras cidades em âmbito mundial, mas Salvador permanece na contramão desse processo. Com 2,8 milhões de habitantes, a cidade dispõe de cerca de 16 km  de ciclovias destinadas ao uso da bike, em caráter meramente de lazer. E apenas uma ciclofaixa inferior a um quilômetro de extensão. Aracaju, com 520 mil habitantes, tem 80 km; Curitiba, 120 km para uma população de 1,8 milhão. O Rio de Janeiro, 180 km, para 6 milhões de moradores. Mesmo com equívocos no traçado dos acessos, São Paulo inaugurou, esse ano, ciclovia com 14 km paralelos às linhas de trens metropolitanos.

Não se trata meramente de pintar ciclofaixas e ciclovias, mas de dotar o equipamento e seu usuário de um completo plano de mobilidade, com bicicletários e implantação de circuitos especiais, principais e secundários. O sistema requer logística específica e gestão (pública, privada ou mista) que envolvam campanhas de conscientização e proteção, além do estímulo à cadeia de produção e comercialização, incluídos serviços de manutenção e locação.

Há estimativa de 20 mil usuários e dezenas de grupos de passeios organizados, em Salvador, segundo a Associação de Bicicleteiros da Bahia. Para a associação, é preciso haver ciclovias em, no mínimo, três trechos da cidade: São Cristovão/Iguatemi, Iguatemi/Estação da Lapa e Calçada/Paripe.  Há, ainda, toda a área plana da Península Itapagipana.

O ciclista não é um obstáculo nas vias, faz parte do transito, está inserido na legislação. A ele não está conectado apenas o veículo em si, mas um conjunto de acessórios que envolvem equipamentos especiais das indústrias de calçados (tênis), viseiras, luvas, capacete, além de inúmeros adereços para turbinar a bike.

Circulando por ruas, avenidas, bairros e rodovias, mas sem contar com a educação para o transito e um planejamento cicloviário, estão expostos a acidentes na guerra insana do tráfego, com estatística crescente e proporcional à ampliação do número de usuários. Dados de 2008 apontam a ocorrência de 364 acidentes com 16 mortes.

A circulação de bicicletas, em condições de segurança e maior comodidade, para amplo contingente de trabalhadores, é importantíssima nas ligações intermodais.

A transversalidade de um sistema cicloviário demonstra inúmeras interfaces. Desde a mobilidade e inclusão territorial à ampliação do universo de utilização e dos calendários desportivo e turístico; estímulo ao empreendedorismo; melhorias na condição de saúde do cidadão; ampliação da consciência ecológica.

Tudo isso pode proporcionar, sem dúvida, o advento de uma radical renovação da cultura urbana. Frente à Copa e à Olimpíada, o que falta mesmo?

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Albenísio Fonseca é jornalista – albenisio@yahoo.com.br

O axé sob contingência

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O axé sob contingência

Albenísio Fonseca

A força avassaladora e contagiante da axé music, com seu modelo “made in Bahia for export”  tem sofrido restrições em territórios carnavalescos país afora. Embora seus artistas e produtores sejam promotores de carnavais fora de época, em eventos como o CarNatal e Recifolia, entre outros, quando reina absoluto, o ritmo “axé” foi proibido, diria mesmo censurado, nos carnavais de Recife, Olinda e nas cidades históricas de Minas. Em Ouro Preto , Mariana e São João Del Rey a música baiana só pode ser tocada em ambientes fechados, fora do circuito oficial da festa, e sob cobrança de ingressos.

Em Olinda, por decretos do Executivo, ficaram proibidos o beijo na boca, sob a alegação de que estariam ocorrendo “arrastões de assédio” – legislação burlada, principalmente nos redutos gays da cidade em festa; e a circulação de táxis, restrita apenas à frota local. No Recife Antigo, a interdição à axé music nos fez contemplar tradicionais manifestações pernambucanas. Dorival Caymmi, se vivo estivesse, poderia reencontrar, sob a chuva intensa, sua “Dora, rainha do frevo e do maracatu”.

Em Salvador cada vez mais ficam menos tênues os limites da geografia do sagrado e do profano no ciclo de festas, vide a revitalização proporcionada por Gerônimo nas escadarias do Passo. Uma intervenção anterior ao seu reinado de Momo. Em Pernambuco, numa rota inversa à roda viva da dinâmica cultural – e mesmo cabendo a Caetano Veloso proceder à abertura da pernambucália folia esse ano – o impedimento a que o ritmo baiano passasse a “cantar de galo” compõe, muito mais que uma reserva de mercado, a legítima preservação do que há de mais genuíno nas expressões populares do estado vizinho.

Por aqui, temos a festejar o tombamento do Carnaval de Maragojipe como patrimônio imaterial da Bahia e o investimento do estado nos carnavais de Palmeiras e Rio de Contas, que têm manifestações culturais tradicionais e peculiares. Festejar, também, o toque de Midas de Carlinhos Brown, extensivo à sua magnífica presença na escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, com seus tambores campeões do Carnaval carioca, e sua quase-marcha “Vai chamar Dalila”, na voz de Ivete Sangalo, mais tocada do período momesco (e que já virou gíria no submundo), em concorrida disputa com o mega axé “Beijar na boca”, da Cláudia Leite, que irritaria o prefeito de Olinda.

Se me coube um dia, em meados dos anos 80, ostentar o então pejorativo “axé music”, em caráter positivo, como título de reportagem,  para a nova onda musical baiana, e sou dos que integram o cordão do “É probido proibir”, tenho que admitir a importância da política cultural pernambucana, acenando para o coração do pierrô Alceu Valença a cantar nossa pluralidade cultural da sacada do casarão onde mora em Olinda.

No mais, lamentar ter perdido o engarrafamento de garçons, bandejas de whisky à mão cheia, no farto (Fausto) dispêndio do openbar oferecido no camarote do governo baiano. Contingenciamento à parte, é claro. Axé!

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Albenísio Fonseca é jornalista, poeta e compositor

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