Desocupa Salvador

Foto: Albenísio Fonseca                                                                                                                          fotoMáscara do filme “V de Vingança”, convertida em símbolo do Occupy Wall Street, foi adotada também pelos indignados de Salvador

As semelhanças da luta e

a tragédia do bem comum

 Albenísio Fonseca

Ainda que sob o temor do excesso, é possível comparar o “Desocupa, Salvador!”, nossa “Primavera baiana”, com outros movimentos recentes como a “Primavera Árabe”, o Occupy Wall Steet, Indignados e o #StopSOPA. Na iniciativa soteropolitana, como nas praças ocupadas do Egito, Espanha, Grécia, Londres, Nova Iorque e na Internet, os rebelados sinalizam e até já constroem com suas mãos este novo agora.

Sob disposição surpreendente, revelam o desejo de impedir que o poder econômico perpetue o saque e a tragédia sobre o que é bem comum, mesmo quando “o espetáculo submete a si os homens depois que a economia já os arrasou inteiramente”, como estipula Guy Débord em “A Sociedade do Espetáculo”.

Ao enfrentar decisões que atingem gravemente a sociedade, e que são tomadas sem nenhuma consulta a ela, de forma velada ou opaca, por “exigência” da oligarquia financeira ou, embora aí já inclusos, do capital imobiliário e da indústria cultural, as multidões (e não classes ou grupos, embora esteja cada vez mais difícil separar uma esfera social da outra) lutam contra formas autocráticas de governo ou gestores inábeis e servis, frente a medidas de ajustes fiscais ou legais, instituídas com base em conteúdo inconstitucional, discricionário ou ditatorial.

Aqui, a luta é contra uma administração caótica e sua usurpação territorial para transferência a setores privados, com manipulação da Lei de Ordenamento do Uso do Solo, sob a benevolência de executivos e parlamentares, à revelia do Judiciário. Lá, deflagradas pelo desemprego, alta no preço dos alimentos, dívida pública, democracia, plutocracia financeira ou tentativa de controle da Internet em absurda “legislação extraterritorial, a ferir o direito internacional”, como ressalta Antonio Martins em #StopSOPA: hipóteses sobre a luta pela internet livre.

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Aqui, ao converter-se praça em megacamarote e ofertar-se reserva ambiental de um milhão de m², sataniza-se, com razão, o gestor municipal, sem arguir-se, contudo, não diria a cumplicidade, mas a co-responsabilidade do executivo estadual.

Professor de Direito Internacional Comparado e autor de “Beni Comuni, um manifesti”, a seguir a economista norte-americana Elinor Ostrom – primeira mulher Prêmio Nobel de Economia, em 2009, por seu livro “La gouvernance des biens communs” – italiano Ugo Mattei defende uma Constituição baseada no bem comum: “Nenhum dispositivo jurídico protege o cidadão do Estado neoliberal quando este transfere para a esfera privada os bens da coletividade”. Afinal, “o papel do governante é o de administrador de confiança, e não de proprietário livre para abusar do patrimônio coletivo”. Em artigo no “Le Monde Diplomatique Brasil”, Ugo Mattei salienta que “a obra de Elinor não foi plenamente reconhecida na comunidade científica, dada as consequências revolucionárias de colocar os bens comuns na posição central entre as categorias do jurídico e do político”.

Nas manifestações em curso, o que está proposto, ainda que de forma difusa, embrionária, é o advento de novas formas de organizar a vida social em prol da comunidade. E é evidente o quanto os protestos articulados de modo virtual são capazes de alcançar vitórias, ainda que parciais e provisórias, porém sempre emancipatórias. Ações típicas de guerrilhas, como se diria nos anos 60/70, as flash mobs ou smart mobs (manifestações convocadas pela rede – Internet ou celulares), no século 21, passaram a ampliar suas motivações (do trivial ao político) e “contaminar”, cada vez mais, novos atores, militantes, manifestantes ou, na antiga expressão, guerrilheiros. Aqui, como lá, antes como agora, o inimigo permanece sendo o estado.

O risco maior a que o movimento em Salvador esteve exposto – o de dispor como suporte apenas a Internet e suas redes sociais – parece estar superado com a disseminação da sua relevância em setores da imprensa e na tessitura de organizações sociais e instituições acadêmicas, ao requerer “leitura” jornalística, histórica, sociológica, urbanística, cidadã. Mesmo omissos nas instâncias institucionais, mas indignados com a representatividade parlamentar, seus integrantes relutam em converter as ações, de apartidária em suprapartidária.

Povoada por iniciativas contra-hegemônicas de enorme alcance, a Internet, com seu universo nômade de tecnologias móveis da era da conexão, proporciona o meio (mas não o fim) para a consolidação de um novo amanhã. Tecido sob a égide do pós-capitalismo – mais desenvolvido na rede que nas demais relações sociais – com multidões, em escala planetária, a exigir a cada dia o resgate da expropriação de parte de seus bens, notadamente a liberdade, o futuro vai deixando de existir devorado pela voracidade do trágico presente.


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